Olá!

Aqui você encontra vários tipos de textos com reflexões, introspecções, filosofadas e relatos, tudo sob a luz do mosaico. Desejo inspirar você com a mesma arte que me inspira.

Pausa para a tempestade.

    Esta fase do "fim de ano" é inacreditávelmente difícil para mim. Faço um esforço Hercúleo para comparecer com alguma dignidade nos compromissos sociais dos quais é impossível estar ausente (leia-se: a consequência de não ir é mais desprazerosa do que o prazer de ficar). A mistura de emoções é muita e igualmente confusa. Assim as filosofadas andam amargas de doer e só param com as novas levas de vidros coloridos que chegam pelas mãos da Lê, num baile de cores e formas capazes de me manter sã por preciosos momentos.
    Então, por compaixão àqueles que dedicam um tempo a esta leitura, ao invés de vomitar meu azedume, dividirei um trecho precioso do livro da Maria Helena Ferraz. Aliás esta mulher tem o poder de trancrever aquilo que se passa em nossa mente, em nossa alma, coisas que nem conseguimos ordenar com muita lucidez, de forma tão simples e direta que até assusta (como ela sabe que eu sinto exatamente isso????). Bem, vamos ao que interessa:

(...)
"É preciso olhar para dentro toda vez que eu olhar para fora. Dentro e fora são iguais! Tudo o que acontece neste Mundo da Forma não passa de uma briga conjugal de fundo de quintal! E toda briga conjugal revela a ferida aberta pelo conflito dentro de mim comigo mesma. Portanto, a primeira lição de cura planetária está na cura do indivíduo. Quando amo a mim mesma, quebra-se um certo feitiço e pela primeira vez rompe-se o antigo colete que me bloqueava o peito e uma luz dali de dentro avança e sem pudor espalha sua beleza magnífica e inconfundível que me permite ver a gloriosa beleza do outro, e de tudo que há. Só então preservo a vida em toda a parte e meu estilo de vida reflete este Amor. Eu Sou a cura do planeta!"
(...)

    Absurdamente pertinente, não é?

    Abaixo um maravilhoso presente como deveriam ser todos os presentes: pessoais e intransferíveis, com muito de quem fez e com a cara de quem ganhou. Afeto materializado.





(Muito obrigada, Helô, por este fôlego energético, este bálsamo cintilante, esta luz no fim do túnel)


    E são estas coisas que me mantém caminhando mais ou menos para frente, no meio desta tempestade indecifrável que são os últimos dias de dezembro.
  
    Para quem não conhece o livro da Maria Helena, veja o texto "Carinho via Sedex". O trecho acima é do capítulo "Atravessando o Grande Rio", páginas 50 e 51.

    Abaixo mais uma peça em mosaico, afinal ninguém é de ferro. Nos "vemos" em janeiro.





Lista de desejos.

    Na segunda metade de dezembro não fica pedra sobre pedra. O calor, que ainda não é insuportável, chega e muda as roupas e os comportamentos. As chuvas espetaculares já ensaiam seus números apoteóticos. Tudo se direciona para o extremo. Há a grande necessidade de fechar ciclos, celebrar, partir para outra e esperar que tudo se renove, ainda que nem um centímetro seja renovado interiormente. Para engrossar os votos bradados das bocas para fora, grito também os meus que são, contudo, pungentes:
    Que aos filhos não seja ensinado que a recompensa do aprimoramento é um brinquedo da moda. Que o contentamento de se tornar uma pessoa melhor seja o presente suficiente.
    Que antes de exigir ser amado, aprenda a amar a si mesmo, com os pés no chão e os olhos bem abertos.
    Se decidir fazer boas ações, caridade de qualquer tipo, que começe pela sua casa onde certamente há alguém precisando muito.
    Se optar por celebrações, que o mais importante seja o encontro com as pessoas e não a comida, o enfeite, o presente ou a roupa.
    Lembre-se que para estar junto de alguém, basta pensar na pessoa. Não tem importaância se não estiverem todos presentes, desde que estejam todos no teu coração.
    Que o ideal comemorado seja praticado diariamente e não apenas lembrado em uma noite.
    Respeite as diferenças que não conseguir entender.
    Laços sanguíneos não são sinônimo de família, mas amor, compreensão, empatia, respeito e companheirismo são.
    Coloque atenção e intenção no que estiver fazendo.
    Por favor, não mate para celebrar o nascimento.
    Que exista um momento de pausa, onde você possa mergulhar em si e encontrar os significados.


Carinho via Sedex.

    Apesar do meu amigo Chuva discordar, ainda acho que a internet é um divisor de eras (para ele a invenção da cola Super Bonder, da fita isolante e da mulher, nesta ordem, foi o que revolucionou nossa existência) . O mundo nunca mais foi o mesmo e vem se transformando velozmente na medida da sua expansão. Para mim a utilidade é evidente e escancarada. Mas fora as áreas nas quais a internet mostrou-se um elemento facilitador, o campo da controvérsia é o das relações sociais. Filas de estudiosos já opinaram a respeito. Uns absolvem, outros condenam. Na prática vejo que, considerando um usuário sadio, não há como o virtual subistituir o real. Dito isso acho um grande barato conhecer o trabalho e as manifestações de pessoas que muito provavelmente eu não travaria contato se não existisse este instrumento. Enveredando por este caminho, me divirto muito com as pluralidades mas também encontro coincidências bem bacanas como um bom número de mosaicistas que adora gatos. Sem falar quando conseguimos reconhecer o nosso sentimento no outro, lá longe, longe mesmo, e então lembramos o óbvio: gente é gente em todo lugar. Parece que todo o planeta é formado por um único país e que todos nós podemos nos entender bem se conseguirmos nos enxergar nos outros seres.
    Um desses seres empáticos é a Maria Helena, que achei no Facebook quando alguém curtiu as fotos de uma mesa inacreditável que ela fez em mosaico. A riqueza dos detalhes deixa o queixo caído e quase todos os dias eu precisava rever aquelas fotos para internalizar a paciência e a dedicação que ela teve nos meses em que trabalhou na peça. Amizade virtual estabelecida, aos poucos outros detalhes se mostraram, como o deslumbramento pela natureza, amor aos animais, não ser carnívora, profundos mergulhos na alma e um amor transbordante por todos.
    Na semana passada descobri virtualmente pela Carmem (mosaicista, gateira, não carnívora) que a Maria Helena editou um livro em 2009. Fiquei interessada pacas porque tudo o que ela diz encontra muito eco em mim. Ao voltar do correio hoje, o simpático porteiro Zé (que está sempre de bem com a vida) me entregou um pacote de Sedex. Ganhei o livro com uma dedicatória deliciosa! Senti muita esperança e muito afeto. Senti a convicção de que tudo tem dois lados e basta você escolher o seu. Meio desacostumada a receber gentilezas, percebi comovida que tudo é real. As fronteiras com o virtual são tênues e caem facilmente se desejarmos.
    As mudanças externas podem acontecer à revelia de nossa vontade. Na mesma linha filosófica de "já que está no inferno, abrace o capeta", mas com menos fatalismo, use o que o mundo tem e aproveite para enviar o que você tem de melhor aos quatro cantos. Hoje isso é possível e fácil. Com um ato singelo, transforme o dia de alguém que está a quilômetros de distância (mas ainda no mesmo planeta). O formato pode estar diferente, mas ainda somos nós por trás dos teclados. Plante pequenas sementes de gentileza. Depois faça a justa colheita.



Abaixo, meu presente:






Conhceça esta mulheres admiráveis e seus trabalhos:
Maria Helena - www.janelasdeaquario.blogspot.com
Carmem - www.ymaguaremosaicos.blogspot.com


A dificuldade de ser livre

    Comecei a perceber este nosso aleijão ainda no antigo emprego. Se quisesse prolongar um atendimento e gerar uma baita confusão bastava oferecer opções ao cliente. Não era incomum ser indagada sobre algo totalmente alheio à minha competência: "O que você acha que eu devo fazer?" Eu? Eu?? EU?????? Não sou eu que não tenho alguém que possa buscar as crianças na escola ou que não consiga sair mais cedo do trabalho para estar na consulta médica. Não sou eu que estou com a perereca em chamas, desesperada por um atendiento. Eu nunca soube como dizer ao meu interlocutor que ele ou ela precisaria estabelecer prioridades e fazer escolhas. Em parte porque entendia que as perguntas eram retóricas. Em parte por não saber por onde começar. Em parte por não acreditar que uma sessão amadora de análise fizesse parte de uma marcação de consulta. O fato é que por vezes sentia pena das pessoas que, por não conseguirem tomar uma decisão cotidiana, colocavam nas mãos de alguém estranho o poder sobre sua vida. Sem exageros, pois se uma decisão corriqueira era motivo de angústia, imagine uma decisão do tamanho daquelas que dividem sua vida em duas partes distintas.
    Essas situações se sucediam em maior ou menor grau na escala de absurdos e eu não sabia ao certo se era uma questão restrita àquele tipo de assunto. O tempo passou e tomei eu uma daquelas decisões que dividem a vida em duas partes distintas. Agora o assunto é totalmente outro, mas a dificuldade em optar, escolher, tomar decisões continua a mesma. Está arraigada em nós, seres imersos por séculos a fio em uma cultura repressora e anti-sensorial. Por ser algo gravado em nosso íntimo de forma tão permanente, muitas vezes, sem perceber, pedimos para uma segunda pessoa decidir sobre algo que não conhece. Por exemplo, como eu posso escolher a melhor cor de uma pastilha se nunca vi a casa onde uma peça feita por mim será colocada? Posso indicar outras coisas dentro da intenção do cliente - algo chamativo, algo discreto, rebuscado, simples, muito colorido, minimalista, etc. Contudo ainda não consegui penetrar em suas mentes e adivinhar o que desejam. Dizem muito "faça como você achar melhor". Sem dúvida! Só que o melhor para mim não é necessariamente o melhor do outro. Pode parecer muito estranho, mas é consideravelmente custoso extrair as informações que preciso para fazer meu trabalho. Tenho que sondar com muito cuidado, pois já percebi que perguntar demais ofende. Para uma gama de pessoas, ver-se em maio a um leque de possibilidades é quase um xingamento. Sinceramente entendo esta dificuldade em lidar com a liberdade de poder fazer opções como uma dificuldade em assumir responsabilidades. É muito diferente daquele que não sabe exatamente o que quer porque o assunto é novo, mas à medida em que recebe informações já começa a caminhar em determinada direção.
    Fomos habituados a não querer. Desejar algo não é visto com bons olhos. Conquistar coisas e sentir prazer com este fato não é digno de um bom cristão. Aí vem a culpa que tortura de uma tal forma a ponto de parecer viável deixar para os outros que decidam sobre nossas vidas, afinal se não der certo é mais bonito ser vítima do que culpado.
    Estamos todos em aprendizado contínuo. Nos sentimos mais plenos na mesma proporção de nossos aprendizados. Evitar as escolhas é abdicar à liberdade. Sem liberdade este processo de evolução fica prejudicado. É claro que cada um de nós age de acordo com o que acredita, mas é preciso entender que não escolher já é uma escolha e, portanto, traz uma consequência que não fugirá da sua frente pelo fato de não ser encarada.


A casa da Dona Velha.

    Logo que se virava a primeira rua à esquerda, mais alguns passos, você podia achar a casa. Não tinha como errar: alpendre, porta com janelinha, cerca de madeira e duas imensas palmeiras ladeando a entrada. Casas mais antigas sempre chamaram a minha atenção (e chamam até hoje). Elas tem muito mais estilo em relação ao que se constrói atualmente. Possuem detalhes em todos os cantos, provas de um capricho costumeiro em uma época na qual o tempo abundava.
    Nesta casa tão simpática morava a Dona Mulher. Não era casada, não tinha filhos, mas tinha o privilégio de dividir o seu espaço com seus gatos de estimação. Sempre que vi a Dona Mulher ela tinha uma expressão que combinava bem com a sua morada. Diria que formavam uma dupla perfeita. Até onde sei a palmeiras majestosas que adornavam sua fachada haviam sido plantadas pelo seu pai, quando construiu a casa (dito isso, imagine quanta história pode morar em qualquer lugar por aí, por onde você passa todos os dias). Para variar, tinha muita vontade de entrar naquela casa pois tinha certeza que tudo ali dentro seria tão pitoresco quanto o lado de fora. Também nunca conversei com a Dona Mulher, mas se o fizesse acho que ela poderia me contar causos de outros tempos, poderia contar como era seu pai e como foi que decidiu plantar as tais palmeiras. Iria me falar os nomes dos seus gatos e contar como cada um é especial à sua maneira.
    O tempo passa para todos e os cabelinhos da Dona Mulher deixaram de ser grisalhos para ficarem branquinhos, sempre curtos e (des)arrumados em cachinhos por toda a sua cabeça. Usava óculos, mas suas armações haviam parado no tempo sem prejudicar absolutamente a sua figura. Nos dias de feira era mais comum vê-la conversando na calçada. Sempre do mesmo jeitinho, só que agora era a Dona Velha e para ela arrumaram um cachorro, ou melhor, uma cadela. Seu contingente de gatos havia diminuído drasticamente e nem imagino quem foi que achou que aquela bichona tão grande e escandalosa fazia o estilo da Dona Velha. Nunca soube a opinião dela a respeito.
    O ritmo no qual o tempo passa é sempre o mesmo, mas a quantidade de mudanças que acontecem na mesma unidade de tempo fica cada vez maior. E neste turbilhão a vizinhança mudou muito. Prédios novos, muitos carros, menos árvores, menos flores, até a feira encolheu, assim como a Dona Velha que me parecia menorzinha a cada vista. E ela foi decaindo assim como a sua casa, carente de alguma manutenção. Mas nem uma, nem outra perdiam seu charme que as tornava especiais.
    Eu já não morava mais por perto há algum tempo e depois disso pouquíssimas vezes revi a Dona Velha. Até que ela se foi. Por que não? Confirmou nossa certeza cabal quando em vida e encerrou suas atividades por aqui. Pouco tempo depois sua casa foi posta à venda. Claro que nos interessamos. Seriam vários sonhos em um: morar numa casa, morara numa casa estilosa e morar na casa da Dona Velha! Na minha cabeça já fazia a divisão dos espaços, onde ficaria minha oficina e onde seria a super garagem do Baltazar. Até saber do corretor a valor pedido. Murchamos. Era uma cifra para pessoa jurídica. Mesmo assim sempre cumprimentava a casa da Dona Velha quando passava em frente. Por respeito e muita consideração.
    A placa de vende-se foi e voltou umas três vezes. Fiquei até com  receio de que a casa fosse invadida por moradores de rua pois seu aspecto era de abandono. Numa certa segunda-feira vi que a porta da frente estava aberta, a placa estava deitada ao chão e ouviam-se vozes. Compraram. Certamente seria derrubada para dar lugar a algum prédio. Nada hoje foge deste destino. Naquela noite contei para o Baltazar que pensou em passar pelo local para tentar comprar a porta com janelinha ou qualquer outra coisa que pudesse ser preservada para contar história. Não sei de onde tiramos a ingenuidade de achar que no final de semana a seguir seria possível fazer isso. No local da casa havia um imenso buraco. Não era um vazio, era um buraco mesmo. Baltazar imediatamente já foi pelas beiradas até chegar ao fundo, antes mesmo que eu pensasse "cuidado para não cair". Eu fiquei na parte da entrada mesmo, vendo um resto do piso do alpendre e as duas palmeiras que pareciam ainda mais altas sem nada atrás delas.
    Basicamente queremos, nesta vida, amar e ser amados. Vendo aquele buraco de terra tive uma sensação de desamor. Quem fez aquilo nem sonha sobre a existência da Dona Velha e de verdade também não quer saber. Era uma casa velha que deu lugar a algo novo. Todo mundo acha que o que é novo sempre é melhor. Parece que onde estava a casa será a entrada de um.....(adivinhe!).....condomínio. Sim, mais um lugar onde a falsa sensação de segurança e completude será vendida e certamente terá quem compre. Sinto que não há mais espaço para o que é especial, para o que é tradicional, para o que é detalhado, para o que leva tempo para ficar pronto. Só fui tirada deste labirinto de questionamentos quando o Baltazar retornou com um tijolo e a parte da frente de uma gaveta. Toda a lembrança que podemos ter da Dona Velha estavam nas suas mãos.
    Desde então monitoro com certa angústia a existência das duas palmeiras que tem suas bases escondidas por tapumes azuis. Quero muito acreditar que se não foram derrubadas e picotadas para virar salada de plamito de peão até agora e porque alguém teve o bom censo de preservar estas árvores seculares para embelezar a entrada da sua obra dispensável.
    Quanto à parte da gaveta resgatada da demolição, ganhou algum tratamento e virou um digno porta-chaves que também sustentará meus aventais. Fiz questão de não remover todas as falhas pois elas me lembram que o tempo sempre passa e que não importa o que façamos por aqui, nenhum de nós é eterno. A não ser as boas lembranças. Estas durarão para sempre.



    Nossos bons sentimentos para a Dona Arminda que sempre preservou a beleza no mundo.


Minha nova teoria

    Há um assunto que costumo revisitar com certa frequência por aqui: como nos realcionamos com as diferenças entre as pessoas. Pois bem, após dias de cursos e mais cursos, muito aprendizado, muita admiração, muito compartilhamento, gente nova entrando, gente de casa se soltando, posso dizer que travei contato com vários tipos de pessoas, em ambientes diferentes e com propósitos diferentes. A referência de "aqui é bom" e "aqui não é bom" evidentemente é muito particular, mas creio que um pequeno ponto ficou muito nítido para mim. O que fez com que eu me sentisse totalmente integrada em um local e totalmente desintegrada em outro foi nada mais, nada menos do que o conjunto de valores dos que estavam ali. Depois que dá o "clique" parece bem óbvio, mas eu me deixei confundir por muito tempo por aspectos não essenciais. Explico: até certo ponto da vida eu tinha certeza que seria impossível estabelecer uma conversa agradável e desfrutar verdadeiramente da companhia de uma pessoa que não gostasse do mesmo estilo de música que eu, que não tivesse os mesmos hábitos alimentares que eu, que não tivesse a mesma admiração por Tarantino que eu tenho, que não tivesse os mesmos critérios de consumo e outros tantos itens da interminável lista de assuntos presentes na minha individualidade. Só que à medida em que busquei amadurecimento e auto conhecimento, pude entender também um pouco das outras pessoas. Como resultado fui afrouxando a tal lista, que ainda continuava um tanto longa e um tanto rígida. Foi então que me surpreendi ao me ver rindo de chorar, totalmente à vontade a acolhida em meio a um grupo que, aparentemente, não teria nada, mas nada a ver comigo. Em contrapartida também me vi como um saci que perdeu o chinelo em um grupo onde tinha certeza absoluta que encontraria muita identificação por compartilharmos um grande ponto de interesse. E foi com esta ironia tão aguda e repetida precisamente nos últimos dez dias que pude finalmente abrir os meus olhos para aspectos que vão além da casca, independente da sua espessura. E assim, retirando parte do meu preconceito pude ficar mais disponível para conhecer aquilo que não é igual ou semelhante a mim. Surpresa! Achei coisas bem interessantes. Não significa que eu vá adotá-las, mas é muito bom saber que existem. Seria a diferença entre olhar o mundo através do "olho mágico" e olhar o mesmo mundo com a porta aberta, onde além de ver mais é possível sair, entrar, deixar entrar, sentir cheiros, tocar e ver cores e luzes.
    Agora posso jogar fora aquela lista de itens que não querem dizer tanta coisa assim. Mas os valores, ah! Estes imperam vigorosos. Talvez num estágio mais evoluído eu entenda que isto também seja superficial (vai saber...), mas por enquanto ainda querem dizer muito na sinalização dos caminhos que quero seguir e dos lugares em que quero estar.


Dedicar a existência.

    Ontem resolvi me intrometer em um assunto que não me diz respeito e assisti a boa parte da cerimônia de Dedicação do Altar e da Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem. Nunca tinha ouvido falar nisso e a curiosidade fez com que eu permanecesse cerca de duas horas no escuro, com centenas de pessoas, relacionado símbolos e significados. Eu não sou, mas nem de longe e com miopia, a pessoa indicada para explicar os ritos que se sucederam. Para simplificar, no meu parcial entendimento, ao dedicar-se um templo este se torna sagrado. Pois bem, o que achei mais interessante foi o fato de se tratar de algo tão sutil, energético, não palpável. Você não pega o sacralizado em suas mãos e corta com a faca, mas você pode senti-lo. E tudo ali fez referência a direcionar a atenção e especialmente a intenção para o lugar. Não pude deixar de me admirar com a compenetração e o comprometimento que vi estampados não só no rosto, mas em toda a expressão corporal de alguns padres que circundaram os presentes para ungir as paredes e incensar a igreja. É o tipo de acontecimento no qual quanto mais gente melhor, pois mais forte se torna.
    Pode ser que eu incorra em uma heresia agora (a de número 1.695.254 que cometo), mas o que aconteceu ali foi um grande exercício de concentração, mentalização e compartilhamento. Para mim cada um dos participantes deu uma parte de si para que o sagrado se fizesse presente. Cada indivíduo, no recoclhimento ao qual foi conduzido, conectou-se com o seu aspecto sagrado, seu tesouro íntimo, sua essência primordial. Fez emergir este aspecto sublime e depositou-o naquele ambiente, dentro daquele contexto específico. Isto foi bastante emblemático no meu modo de ver. Ilustrou com perfeição do que um grupo é capaz quando tem uma meta comum. A força está no coletivo, no somatório das forças individuais. Vejo isto como uma clara demonstração do poder que temos dentro da nossa limitada condição humana. Temos o poder da transformação. Ao transformar aquilo que é mais sutil automaticamente transformamos o que é mais denso e bruto. Analise por um instante a extensão deste mecanismo. Repare que isto pode mudar muita coisa em você e à sua volta. Esta percepção é uma ferramenta de evolução, a meu ver. O melhor de tudo é que se trata de algo acessível. Para tanto basta estar conectado com o que se deseja. Esta conecção envolve disciplina e compromisso. Por último, tão importante quanto estabelecer uma sintonia e direcionar a intenção é buscar os seus iguais, pessoas que compartilham dos mesmos valores e dos mesmos objetivos. Agora me diga: isto não te faz ter esperança, junto com um sentimento de que tudo é possível se for genuinamente desejado?

Fontes de inspiração.

    Estava eu em um espetáculo de música de primeira classe, sentindo o privilégio de pertencer à espécie humana (a única que consegue extrair prazer da música), quando me dei conta de que o prazer de estar ali não vinha somente da música, mas de uma grande quebra de padrões que a maioria de nós carrega. Havia à nossa frente artistas cujo caçulinha já acena de perto para os 60 anos. Os demais rumam firmes, fortes e com toda dignidade para os 70 anos. São momentos em que você olha alguém e pensa "quando eu crescer, quero ser igual a ele". Aquela visão foi um sopro de vitalidade.
    Desde que nascemos já nos deparamos com prazos para tudo. Para deixar de mamar, para deixar as fraldas, para ir à escola, para entar na faculdade, para namorar, para casar, para se separar, para ser bem sucedido, para ter filhos, para ter netos, para parar de trabalhar, para ficar doente e para morrer. Cai um pacote em nossas cabeças com várias fases dentro. Como não há manual do proprietário para nossa existência vamos seguindo o roteiro que está lá, tal qual a nossa amiga (agora mais íntima) operadora de caixa. Temos aqui uma grande contradição: não há regras para a vida (não há manula). Correto. Contudo vivemos cada dia no cumprimento de regras. Seria um paradoxo dos mais birutas. Digamos que você está em uma fase da qual gosta muito. É provável que em algum momento coloque ali um ponto final porque está na hora de...(alguma coisa). Parece uma auto-zombaria, não? É como dizer que não faz bem ser feliz por muito tempo. 
    Tinha à minha frente uma banda que é chamada pela mídia de avós do seu gênero musical. Esquecendo esta necessidade incessante de classificar tudo com base em algum pré-requisito supérfluo, o que eu via eram cinco pessoas com muito tesão no que estavam fazendo. Não há motivos para que se aposentem. São muito bons naquilo que fazem. Parariam para ver o tempo correr? Não. Continuam produzindo música de qualidade ao longo de décadas e arrebatando gerações. O melhor de tudo é que isto não é exclusividade de ninguém. Nada te impede de seguir caminhos que tragam muita paixão. Ainda que ninguém à sua volta tenha a coragem de fazê-lo não significa que é errado. Repare que aquelas pessoas que buscam sua própria luz são a inspiração para todo o resto. Esta é uma forma bem bacana de mudar o mundo: inspirando pessoas pelo simples fato de se sentir pleno, realizado, apaixonado pela vida e buscando sempre mais. Se você quer tentar, não faça disso também um roteiro pronto com protocolos a seguir. A vida de pessoas que inspiram não é um cotidiano de Pollyana que tomou Ecstasy. Ninguém dorme e acorda abraçando árvores, mas é possível cultivar atitudes e fazer escolhas compatíveis com a sua própria verdade. Dica para quem quer começar: escolha um modelo para se identificar. Observe-o e entenda qual aspecto dele lhe causa admiração. Observe-se e veja se há pequenos ajustes que possam ser feitos para que você caminhe na direção que dá mais prazer. Mais importante de tudo: se gerou desconforto, pare. Imposições não fazem ninguém mais alegre. Especialmente a imposição de ser feliz.





Abaixo, meus inspiradores.

Síndrome de operadora de caixa.

    Juro que me segurei semanas a fio, esperando mudar minha própria percepção. Não consegui, então preciso me expressar. Por já ter trabalhado com atendimento ao público, presto muita atenção em quem está desenpenhando esta tarefa. Vejo de tudo: a postura, a apresentação pessoal, o tom de voz, a maneira de falar, a forma de seguir o protocolo de atendimento e...o olhar. Esta desgraçada janela da alma capaz de jogar no lixo todo esforço que se faz tentando tranformar tripas em coração conta detalhes íntimos e estarrecedores sobre o observado.
    Meu inconformismo vem da constatação de que 90% das pessoas que observei dizem, por algum dos itens analisados, senão por todos, que não gostam do que estão fazendo. Em um supermercado a minha precisa estatística sobe facilmente para 99%. Esta semana mesmo a funcionária, com a palavra "treinamento" estampada bem grande na camiseta, agia de forma tão apática que achei que a qualquer momento seria tomada pela própria inércia e viraria uma estátua de pedra, mesmo sem ter olhado diretamente nos olhos da Medusa. Fiquei me perguntando se alguém que está sendo treinado não conserva algum entusiasmo a fim de garantir e efetivação na vaga. Resposta: não. Se ali todo mundo se comporta daquela maneira, não fará diferença alguma. A dúvida seguinte foi se o treinamento era, não para operar o caixa, mas sim para morrer em vida. Pareceu mais plausível. Política da empresa talvez.
    Nos dias em que acordo com a Madre Teresa incorporada, tenho vontade de tomar aquelas mão de unhas roídas ou maxi compridas e decoradas com glitter, olhar naqueles olhos vazios e perdidos e dizer "Sinto muito por você odiar seu trabalho". Nos dias em que acordo com Michael Douglas, no seu personagem do filme "Um dia de fúria" incorporado, tenho vontade de sacudir aquela pessoa pelos ombros e dizer " Acorda, criatura! Você tem escolha! Não precisa gastar a sua vida no que não gosta!". Obviamente não faço nem um e nem outro, pois tenho uma teoria de que gente apática morde sem motivo. Contudo é inevitável pensar nestas pessoas que não conseguem ver além. Pegam os valores que estão fltuando por aí e aplicam à própria vida sem pensar se servem para elas ou não. E assim ficam habituadas ao sofrimento auto-imposto de uma forma tão indelével que todas as suas escolhas seguintes seguem a mesma falta de padrão. Pior, quando surge uma oportunidade de cultivar algo que lhes traga crescimento e lhes amplie o horizonte, irão recuar instantaneamente entoando o mantra dos que não se valorizam: "não tenho tempo". E é verdade, pois seus dias estão minuciosamente divididos em atividades que lhes geram desprazer e improdutividade.
    A tristeza disso é ver pessoas que não acreditam que têm potecialidades para desenvolver e que podem levar uma vida inspiradora e repleta de realizações. Não se trata de ter este ou aquele emprego, mas de estar aonde não se quer. E que ninguém me venha com com aquela repugnante frase feita de que "se fosse coisa melhor não trabalharia nisso". Se essa arrogante asneira sem tamanho fosse verdade, presumo que todos aqueles que ocupam o topo da escala hierárquica sejam baluartes irretocáveis para a humanidade. Definitivamente não é por aí. O comportamento lastimável ao qual me refiro também desfila de carro, com roupas alinhadas, arrumado e perfumado. O que eu gostaria de ver são pessoas capazes de extrair tudo o que sua função exige e ir um ou dois passos adiante. Um bom exemplo disso está no vídeo, que circula pelas redes socias, do agente de trânsito do Espírito Santo. Aquele sujeito faz tudo o que a função exige e mais. Ele espalha alegria com sua forma educada e descontraída de orientar os cidadãos. Certamente o maior beneficiado é ele, mas a sociedade onde ele atua colhe grandes frutos graças ao seu comportamento. Também tem o vídeo do pipoqueiro empreendedor que é mais um bom exemplo.
    Mais angustiante do que ver pessoas que decretam a própria sentença de morte é eu não saber o que fazer quanto a isso. Talvez eu deva trabalhar nesta questão do medo de levar uma mordida da operadora de caixa. Sim, creio que devo me encher de coragem e dizer alguma coisa da próxima vez em que me deparar com uma figura dessas. Claro que não vamos iniciar uma sessão de análise ali, no caixa, mas quem sabe eu  consiga sensibilizá-la para a questão utilizando a sabedoria do querido elfo Baltazar: "Querida, é perigoso você ficar por aí com esta cara de bunda porque sempre tem um cara de pau por perto". E não é?


Para assistir aos vídeos:
- Do agente de trânsito acesse www.autoentusiastas.blogspot.com, postagem do dia 28/09 com o título "Extra: exemplo de agente de trânsito".
- Do pipoqueiro, no Youtube digite "pipoqueiro empreendedor" no campo de pesquisa.

A feliz história de um pallet.

    Em uma data incerta, numa ilha fria e muito distante, nascia um pallet. Diferente de seus companheiros, não seguia as medidas padrão de 1,00m x 1,20m. Seu formato era outro, resultado de seus 1,05m x 0,50m elegantemente distribuídos por ripas espassadas. Desde seu nascimento, seu destino fora traçado. Não permaneceria de um lado para outro, em algum depósito ou estoque, por anos e anos a fio até a sua aposentadoria. Nada disso. Sua tarefa de vida era muito específica. Serviria de base para o transporte de uma imporante peça e para isso seria necessário percorrer uma grande distância. Como todo baixinho, este pallet acreditava que grandes acontecimentos lhe estavam reservados em terras tropicais.
    Muito satisfeito com a sua missão, cruzou um oceano inteiro com muito orgulho pois sabia bem da importância de estar ali sustentando firmemente algo de valor. Mais do que isso, sua presença era fundamental para o deslocamento adequado de algo tão esperado.
    Chegando ao destino, apesar de já mostrar as marcas do que vivera até ali, continuou com nobre resignação o desempenho de sua tarefa. Não importava que o peso sobre seus ombros fosse muito pois havia sido projetado para isso. Aqueles que o manipulavam eram impiedosos e mais marcas, profundas e perenes, eram estampadas em seu corpo.
    Certo dia, a precisosa peça, para cujo tranposte fora fabricado, finalmente foi posta em uso. Tendo a carga retirada de seus ombros, o pallet se sentiu muito, muito leve e mal podia esperar para a próxima tarefa. Foi levado para um canto qualquer, sem nenhum abrigo do tempo, junto de outros companheiros. Sabia que a grande estrela da festa não seria ele mas sempre o objeto transportado. Assim compreendeu o fato de não haver acomodações especiais para estruturas como ele, mas ficou preocupado com sua madeira que poderia sofrer deterioração e prejudicar sua promissora carreira. Os dias  passavam longos e nenhuma novidade chegava até ali. Começou a fazer alguma amizade com os que estavam na mesma situação, mais para ajudar a passar o tempo já que não era muito de conversa. 
    Geralmente os assuntos eram enfadonhos e havia uma certa disputa de egos ali. Este pequeno pallet, por estar fora de padrão, sentia-se preterido. Começou a duvidar de sua sorte e já não sabia se era mesmo tão especial como acreditava. A resposta veio repentinamente, de forma seca e cruel. Todos ali seriam jogados fora. Como? Por quê? O pallet não entendia a razão de não ser mais utilizado se era tão forte. Mas do que isso, havia sido concebido para aquele trabalho. Não havia esperança alguma. Com seus temores concretizados, o pallet mergulhou em profunda depressão e tinha pesadelos horríveis onde era queimado numa fogueira de "sem-teto" ou servia de precário apoio na construção civil. 
    O que o pequeno pallet não sabia era que perto dali uma fada-madrinha havia recebido uma missão especial: transformar uma estrutura como a sua em uma peça de decoração. Sim, o Deus dos Pallets estava cansado de ver seus filhos tendo finais algozes após cumprir sua missão na Terra. Vendo que poderiam ser ainda dignamente muito úteis, lançou o desafio. A sorte de nosso pequeno herói mudou no momento em que Baltazar, um elfo que sempre ajudava muito a fada-madrinha, vendo-o na chuva pronto para o descarte, elegeu-o como merecedor da transformação.
    A fada tomou o pallet em seus braços e levou-o para casa. Apiedou-se dele, que estava tão fedido e molhado.
    Os pequenos animais da floresta foram correndo ao seu encontro sem se importar com sua aparência. Naquele mesmo dia, a fada-madrinha foi providenciar o material para sua nova roupa. O pallet estava um tanto constrangido, apesar de agradecido, porque não fazia idéia do que esperar da sua vida agora. A fada carinhosamente lhe explicou que ele, dali a alguns dias, passaria a ser um mesa de centro. O pequeno pallet voltaria a sustentar objetos, mas nada tão pesado. Um pouco descrente de sua sorte, decidiu relaxar no banho esfumaçante de kálí-danda prontamente providenciado para que seu cheiro melhorasse.
    No dia seguinte a fada-madrinha começou o seu trabalho. Primeiro lixou, lixou, lixou nosso amiguinho, despiu-o de antigos pregos e fez uma minuciosa marcação que nortearia a confecção de sua roupa.
    Depois ela juntou as ferramentas para cortar, colar, cortar, colar, cortar, colar. Ao fim daquele dia o pequeno pallet já podia se animar com as cores que havia ganhado. Muito trabalho ainda estava pela frente, mas já podia se sentir bem melhor.
    A fada trabalhou sem descanso. Os animaizinhos da floresta ficaram carentes de sua atenção e o querido elfo Baltazar também. Contudo todos entenderam a importância daquela transformação e ficaram animados ao verem a roupa praticamente pronta.
     Agora o pequeno pallet sentia-se plenamente amado. Apesar das explicações da fada-madrinha, ainda não entendia bem o que era uma mesa de centro, mas não se preocupava com isso pois sabia que estava em boas mãos. Com a roupa montada, a fada-madrinha passou horas colocando rejunte e depois mais horas passando verniz. Sim, a tarefa de salvamento havia sido concluída. O pallet nem se lembrava mais que não tinha medidas padrão. Aliás todo o seu passado não importava mais. Queria mesmo era conhecer os objetos que sustentaria e quando isto aconteceu ele pode finalmente entender o que fazia uma mesa de centro.
    Quanta alegria! Sentiu muito orgulho de si mesmo e júbilo ao lembrar da sensação que tinha quando ainda estava na ilha fria e distante. Sua certeza de que seu destino seria extraordinário havia se confrimado. Ele agora era o centro das atenções de uma sala de estar. Não poderia imaginar honraria maior.
    Vai dizer que nosso pequeno herói não tem mesmo muito estilo?
    Moral da história: o melhor sempre está por vir.








Para onde ir?

    Ando muito confusa e com dúvidas sobre a igualdade entre as pessoas. Sempre entendi que nos enfileiramos desta forma por uma questão moral, por princípios, que nossas diferenças eram supreficiais e bem lá no fundo seríamos feito do mesmo barro. Agora já não tenho tanta certeza.
    Parece-me que hoje as diferenças estão muito profundas. Na realidade a diversidade superficial é o que menos chama a atenção. Mas tem estado evidente que enquanto alguns surgiram do barro, outros vieram de qualquer outro material indecifrável e incompatível. É inegável que nossos início e nosso fim sejam os mesmos, porém tudo acontece no meio e é exatamente neste ponto que algo se perdeu. Este desencaixe é para mim tão gritante que não consigo mais colocar todos nós sob a classificação de "ser humano". Preciso de outras categorias. A falta de sintonia com nossos pretensos semelhantes seria como tentar aparentar uma borboleta com um jacaré.
    Fazemos todos parte de uma só coisa, estamos todos no mesmo barco, nosso caminho é riscado pelas trajetórias alheias. Tudo isso ainda faz sentido para mim, mas as diferenças...estão abismais. Nem se faz necessário viajar até a Suíça (um beijo Helô e Vitão!), que por pouco não é outro planeta, para sentirmos o impacto. Bairros de uma mesma cidade já carregam seus próprios ecossistemas. Se mudar de cidade, socorro! Sabemos que ambientes distintos são capazes de gerar indivíduos distintos na mesma proporção. Contudo as diferenças às quais me refiro estão na alma e não se trata da velha discussão "bom x mau", mas simplesmente da falta de igualdade.
    Dentro da convicção que carregamos de admirar nosso próprio jeito de ser, creio que esta questão seja um estágio além da situação do "Pudim Solitário". O pudim tem cada vez mais contato com outros pudins, comunidades inteiras, mas por viver de certa forma entre as paçocas, os quindins, as bombas de creme e os camafeus de nozes não deixou de sentir um ranço existencial de pseudo inadequação. Será que ao pudim lhe basta saber que existem outros pudins ou precisa de fato estar entre eles para sentir-se um pouco mais pleno? E seria apenas um pouco porque dentre os pudins há o de chocolate, o de leite, o de leite condensado...
    Não sei se um dia já consegui verdadeiramente, mas parece que nunca estive tão inábil para lidar com diferenças profundas. Tudo me parece irreconciliável. Nuvens negras à parte, acho que caminhamos para um divórcio social pois não me refiro aqui a diferenças que acrescentam, mas às que apartam. Tenho uma sensação nítida que para prosseguirmos no crescimento não poderemos mais habitar o mesmo lugar.

 

Barba, cabelo e bigode.

    Muitas pessoas tem bastante resistência em assimilar o mecanismo de responsabilidade sobre a própria vida. Aquela velha, mas atual, história sobre as consequências das escolhas que fazemos. Andei observando e parece que há uma área onde a tendência "o problema é o mundo" parece recuar um pouquinho (algo em torno de 0,5 cm): os relacionamentos afetivos. Por mais que você passe a vida numa espécie de coma, sem envolvimento consigo mesmo, é necessária a sua vontade para estar com alguém. Pelo menos aí acredito que possa existir um consenso de que casamento* ocorre por escolha de duas pessoas.

*Considero casamento toda união estável de duas pessoas que habitam o mesmo lar. E ponto.

    Se há algo que me entristece é assistir à metamorfose de comportamentos ao unir as escovas de dentes. Parece que apertam um botão, viram uma chave e dois seres diferentes aparecem. Estes ETs nada lembram os indivíduos da época de namoro. As gentilezas, as demonstrações constantes de afeto, o companheirismo, a cumplicidade, tudo isso evapora e cada um passa a incorporar uma personagem esteriotipada. Talvez por terem passado uma vida sendo doutrinados sobre deveres e obrigações de maridos e esposas, o casais nem questionam se aqueles preceitos lhe servem. Cada um entra para um time e agora são rivais. Passa a existir uma competição de quem é o melhor ou o pior na sua função, de quem é a vítima e quem é o algoz. E agora, já que o problema não é o mundo, certamente tudo é culpa do outro.
    Essa é uma das maiores loucuras humanas. Nunca entendi porque se costuma exigir do cônjuge poderes paranormais para adivinhar e suprir as necessidades do parceiro. É como uma aposentadoria de inteligência emocional. Quando se mora com a família, fica muito claro que cada um tem um jeito de ser. Por mais que cultivem rotinas semelhantes cada membro tem sua individualidade. Todos fazem algum esforço para que a convivência seja a melhor possível já que valorizam o fato de estarem juntos. Por que não levar este aprendizado desenvolvido durante décadas para a vida a dois? Se a sua vida em família era um inferno, não seria má ideia procurar uma ajuda profissional para se curar destas mágoas. Vá para a vida adulta saudável, limpo, muito consciente de que ninguém jamais poderá fazê-lo feliz senão você, sem o estúpido equívoco de acreditar que o outro tem a obrigação de saber o que você não diz. Quando vejo estes descompassos, questiono se ali há amor. Não afinidade, amor mesmo, este sentimento tão imperativo que nos aproxima de pares tidos como improváveis.
    Tenha uma coisa em mente: quando você ama alguém e escolhe ficar com ela, saiba que levará o pacote completo. Você não se casará apenas com o príncipe encantado ou com a princesa da torre. Casará com o príncipe que tem a barba áspera pela manhã e com a princesa que parece que engoliu um sapo quando acorda. Todos somos um emaranhado de qualidades e defeitos. Tenho para mim que, com exceção dos estados de doença, os defeitos nunca são maiores do que as qualidades. A dualidade é característica inerente do ser humano. Se você gosta apenas de uma parte, me desculpe, mas eu não chamaria isso de amor. É outra coisa. O amor tem os pés no chão e não acontece com condições. É inteiro e pleno, nos faz melhores e traz maturidade, mas para que isso aconteça precisa ser vivenciado de maneira integral. 

 

Até logo mais.

    Quando refletimos, meses atrás, sobre os ciclos da vida, chegamos a um consenso de que os mais difíceis são aqueles que envolvem separação. Mais difícil ainda quando esta separação é voluntária, escolhida. A sensação de que não se deve mexer em time que está ganhando cresce muito e nascem um milhão de "por quê". São tantas as indagações que se não colocarmos os pés no chão novamente, orbitamos eternamente o problema, sem pausa para avaliar as soluções. Quem vai tem razões muito fortes para fazê-lo e uma convicção de que vale a pena. Quem fica não tem tanta certeza e se pega repetindo frases de compreensão da boca para fora.
    O que acontece com quem fica é que instantaneamente percebe-se reavaliando a própria vida. "Será que eu também não deveria buscar uma mudança deste tamanho?", "Será que fiz as escolhas certas até aqui?", "Será que sou mesmo feliz na vida que levo?", "Será que seria corajoso o suficiente para fazer o mesmo?", "Será que quem vai é melhor do que quem fica?", será, será, será........É uma reflexão dolorida porque é imposta e porque tem parâmetros externos. Não é possível balizar a nossa vida em relação às escolhas do outro. Mas é difícil não ter uma sensação de que se ficou para trás, de que o gancho da história foi perdido e não se sabe onde. Quem fica pode sentir-se preterido afinal a vida lá longe deve ser muito melhor do que a vida ao meu lado.
    A cerejinha do bolo nas separações é que intimamente sabemos que o amanhã é incerto, há muitas coisas que não controlamos. Podemos planejar reencontros, mas não temos certeza se acontecerão realmente. Não sabemos se uma crise mundial trará a pessoa querida de volta antes do previsto ou se o sucesso a levará para outros cantos por mais e mais anos. Então cá estamos nós novamente tendo que lidar com um vazio, tendo que elaborar uma espécie de luto de pessoa viva. Ainda que  este tem uma vantagem: de quando em quando é possível ter notícias, saber as novidades e se está tudo bem. Não é isso que dizemos que nos basta? A felicidade do outro? Mentira! Queremos a nossa primeiro (isto nós só admitimos sozinhos, trancados no banheiro e com a luz apagada, não é?).
    Pois bem, quem fica vai reorganizar a vida para que os espaços vazios sejam menos percebidos. Vai reestruturar as emoções para que ainda exista paixão nos dias, para que o cotidiano valha a pena. Buscará novos convívios e novas afeições. Quem fica sabe que a qualquer momento outro alguém querido poderá dizer que está de partida e por isso não deixará nunca mais de expressar seu bem-querer, com palavras e gestos, a quem quer que seja. Que fica sente na pele que tudo muda de uma hora para outra e não vai mais gastar tempo com coisas mornas. Vai se cercar de pessoas que lhe fazem bem, que lhe estimulam e inspiram. Vai aproveitar o hoje porque nada sabe sobre o amanhã.
    Quem fica sabe que o amor viaja pelo vento e que pode ser enviado ou recebido a qualquer tempo. Quem fica sabe que o reencontro sempre acontece, apesar de não saber quando e onde. E relaxa pois se a afinidade que nos manteve próximos por aqui for verdadeira fará com que a separação seja esquecida no instante em que nos virmos novamente. Parecerá que nos encontramos na semana passada. Portanto, meus queridos, podem colocar a lasanha no forno e até mais!



Incríveis sorrisos.

    Quando levamos uma noiva até a igreja pela primeira vez, eu não fazia ideia de quão lindo pode ser um casamento visto por uma espécie de bastidor. Para mim a cerimônia era uma questão de cumprir rituais, etapas e protocolos coordenando uma série de prestadores de serviços e um batalhão de convidados. Sempre achei que quanto maior o evento, mais distante ele ficaria do seu motivo raiz. Já fui convidada em vários casamentos e duas vezes madrinha. Claro que são vivências distintas, contudo a situação de maior envolvimento não havia proporcionado para mim o ponto de vista possível de se ter quando se busca uma noiva no salão de beleza, leva até a igreja, da igreja leva para a festa e, por fim, leva da festa para casa.
    Uma noiva quando acaba de ficar pronta tem algo de sublime e etéreo. Irradia alegria e expectativa por um momento sonhado onde irá declarar diante de um público inebriado o quanto ama a pessoa escolhida. Se até horas antes ela esteve cansada e estressada por conta dos preparativos, neste curto espaço de tempo que antecede a cerimônia não é possível vislumbrar nada do que já passou. Há somente o contentamento do que está por vir.
    Depois de manobrar todos os panos do vestido para dentro do carro, seguimos com todo o cuidado até o destino. Pelo caminho há olhares curiosos. Impossível não notar uma noiva dentro de um carro. Crianças dão tchauzinho, mulheres esticam o pescoço, homens gritam o óbvio ("vai casar, hein?") e outros buzinam e desejam felicidades. São várias reações, mas ninguém consegue ficar indiferente.
    Uma vez que chegamos ao destino precisamos ficar escondidos, protegendo aquele tesouro branco de um desavisado olhar de noivo. É com a cerimônia iniciada que manobramos novamente aquela montanha de panos para fora do carro. Sob os olhares de um pai nervoso surge sua princesa. O nervosismo cede lugar a um olhar encantado, embasbacado que diz "você está linda!". Neste ponto a emoção é tanta, o amor é tão presente que é possível pegar seus pedacinhos pelo ar e guardar num potinho para mais tarde. Quando as portas se abrem há um mar de rostos sorridentes, há lágrimas discretas de felicidade e uma onda de afeto conduz pai e filha até o altar.
    Ao final da cerimônia, quando saem os padrinhos, os sorrisos são largos e espontâneos. Alguns se abraçam, outros se cumprimentam e todos se dão os parabéns como se eles próprios tivessem acabado de casar. Nós, mais uma vez manobramos tecido e mais tecido para dentro do carro novamente. A princesa agora é rainha e ao seu lado está uma pessoa imensamente feliz cujos olhos brilham como dois diamantes. Neste momento o mundo é só deles e nada mais importa. Qualquer coisa que se diga não é ouvida. Verdade mesmo! Já fiz o teste e alardeei as notícias mais absurdas. Nada era capaz de fazer um olhar emergir do outro. E os sorrisos! Muitos, infinitos, espontâneos, sinceros e transbordantes de um contentamento que só o próprio casal é capaz de descrever. É tanto amor que circunda aquelas pessoas que só de estar pertinho, é possível ficar apaixonado.
    Chegamos à festa e tudo será contagiado pela história daquelas duas pessoas que se encontraram, se acertaram e decidiram seguir seus caminhos lado a lado. Tudo é intensamente celebrado até que sobram aquelas mesmas pessoas. A gravata foi parar no bolso, o terno já está com a noiva que eventualmente calça outros sapatos. Tudo já está meio desmanchado, borrado e suado. Mas os sorrisos.......os sorrisos continuam lá da mesma forma que estavam desde o início.
    Agora já não há aquela preocupação de manobrar os panos do vestido com tanto zelo. O recém-marido é convocado para ajudar e o precioso traje é socado de qualquer jeito para dentro do carro. O melhor de tudo é que não há problema algum com isso. Seguimos para a nova casa. A alegria não acaba, pelo contrário, não para de transbordar. A nossa tarefa foi cumprida. Sentimo-nos honrados em participar de detalhes tão únicos e tão especiais. Depois de horas de celebração e festejos, meus olhos se enchem de lágrimas uma última vez vendo o casal se afastar, transpassar portões, entrar na sua nova vida e iniciar sua própria história.


Amor maior.

    O dia ontem foi marcado por muito afeto para a maioria das pessoas. Mesmo que para alguns, junto ao carinho, venha também muita saudade, creio que exista um denominador comum: o sentimento de que somos muito sortudos. Nascemos de uma escolha corajosa de pessoas que têm amor sobrando.
    Cada um à sua maneira, podemos experimentar uma experiência única que é a de ser filho. Trata-se de um privilégio milimetricamente calculado pela natureza. Surgimos neste mundo dependentes, bagunceiros e barulhentos e somos acalantados. Depois vamos ficando mau humorados, ingratos, temperamentais e ainda assim mais e mais nos é dado. Que coisa sublime esta invenção do amor incondicional! Por mais que sejamos falhos sempre há disposição em nos entender e em nos perdoar. Diga se não é uma coisa de outro mundo ter alguém que te apoie e que torça por você independente das suas escolhas? Não, é deste mundo mesmo, o que torna tudo ainda mais especial.
    Ser filho é ter a chance de aprender lições muito valiosas por meio do amor e não do sofrimento. Aquele dito plano da natureza, lá pelas tantas, nos faz amadurecer para que possamos entender, ainda que teoricamente, a dimensão de um amor transcedental. Passamos, então, a cuidar melhor deste vínculo único. Isto envolve algo muito importante chamado gratidão, que seria aqui uma mistura de muito amor e felicidade ao perceber que se podemos desfrutar da vida que desejamos é porque alguém trilhou um caminho antes de nós.
    Como retribuir tudo isso? Bem, nada material contempla algo desta magnitude. Acredito que a melhor forma de agradecimento é ser feliz, pois toda aquela dedicação tem neste fato a sua meta. Nós filhos podemos agradecer sendo pessoas realizadas e alegres, capazes de compartilhar o amor que recebemos. Podemos buscar nossa evolução individual de maneira contínua e, desta forma, ajudar a melhorar nosso meio de convívio. Esta é a verdadeira continuidade das gerações. Muito mais do que multiplicar o código genético é construir efetivamente sociedades melhores e perceber que isto é possível graças à escolha, à dedicação e ao amor de alguém que um dia decidiu se tornar pai.


A magia do encontro.

    Ontem eu e o Luciano comemoramos 16 anos que nos conhecemos. Cinema e barzinho à parte, sempre recordamos os caminhos que percorremos neste período. Assim, como aquele balanço que se faz no dia do aniversário, percebemos as mudanças, os crescimentos, os amadurecimentos. Também reconhecemos o que precisamos melhorar, mas sem drama, que não ajuda em nada, e mais como um desafio a ser conquistado com cumplicidade, companheirismo, empatia e muito amor. Já dá para enfileirar alguns aprendizados depois deste tempo juntos, mas o que eu coloco no primeiro lugar da fila foi algo que possibilitou que esta história começasse.
    O ano de 1995 trazia grandes mudanças. Era o primeiro ano da faculdade, muita adaptação e muito conflito interno. O contato com os amigos do colegial ficava cada vez mais escasso. Cada um estava no seu próprio processo de adaptação a uma nova vida. Ainda procurava alguma identificação com as pessoas que conhecia e me sentia muito só. Não sei dizer como foi, mas lembro de ter tomado uma decisão interna importante que era enxergar a nova realidade como uma oportunidade de traçar rumos diferentes. Se havia algo que não me agradava, a partir daquele ponto poderia ser diferente se eu quisesse. Não queria mais pensar no que me faltava e resolvi aproveitar melhor o que já tinha. Claro que queria ter um namorado, além de uma porção de outras coisas, mas não dava para indexar a minha existência a isso. Então voltei toda a atenção para mim mesma a fim de ver o que precisava de cuidados. Assim alguns detalhes foram ajustados, desde iniciar uma atividade física até sair para passear mesmo sem ter companhia, pois pensei "e se nunca mais eu tiver amigos, vou ficar dentro de casa para sempre?". Realmente não seria uma possibilidade.
    Tudo ia bem. Acho que era a primeira vez que eu travava um contato um pouco mais profundo comigo mesma desde o início de era das trevas (a adolescência), que saía do piloto automático e tentava desvendar o que ia dentro de mim. E aí aconteceu! Acho que estava tão desencanada do Planeta Terra, da Providência Divina, da existência do Self e dos conflitos político-sociais que o mundo pode finalmente girar. E lá fui eu, totalmente sem saber porquê, ao aniversário da colega que nem era da minha panelinha do ano anterior. Lá aceitei uma carona de volta para casa de alguém que não conhecia, algo que não era do meu feitio, e o resto é história.
    O que fica para mim deste episódio é que muitas vezes desejamos muito alguma coisa, pedimos tanto, conjecturamos ainda mais e não abrimos espaço para que tudo aconteça. A ansiedade gerada é tamanha que não sobra uma brecha para o novo entrar na nossa vida. O outro aprendizado, que depois eu esqueci por muito tempo para reaprender mais tarde, é que, para que aconteça um fato novo na nossa vida, precisamos fazer algo que nunca fizemos antes (no meu caso aceitar a carona de um desconhecido). Faz sentido, não?
    Muito bem, este é o relato auto-analítico de um acontecimento muito importante para mim. Contudo há uma outra versão, não tão bela e nem tão profunda. Ocorre que um mês antes de conhecer o Luciano, viajei para o Chile e fizemos a travessia dos lagos Andinos. Lá pelas tantas ficamos em uma ilha a fim de passar a noite e continuar o passeio no dia seguinte. Naquele lugar, que parecia saído de algum filme, havia uma cachoeira com uma lenda: bastaria beber três goles de suas águas para encontrar, em até uma ano, a pessoa com a qual iria se casar. Na recepção do hotel havia cartas e mais cartas de hóspedes que encontraram suas almas gêmeas depois de cumprir o ritual. Não lembro o gosto da água. Só sei que nunca matei a sede com tanta fé.

(P.S.: para quem tiver interesse, forneço o nome da ilha e os detalhes de como chegar lá)

É bom e todos nós gostamos.

    Na semana passada, meu primo Anselmo fez mais uma bela contribuição para nossas filosofadas por meio de seu comentário. Ele tocou em um assunto que é ponto muito relevante na existência de toda pessoa que deseja ser civilizada: o respeito ao ponto de vista alheio. Este é um daqueles assuntos cabeludos e embaraçados, pois exigir respeito é algo que todos fazemos de peito bem estufado, mas respeitar...aí já não é tão automático assim. Por vezes o modo de ser do outro chega a ser uma ofensa pontiaguda se analisada com nossas próprias lentes. Mas se estamos todos no mesmo barco (e estamos mesmo, acredite!), por que é tão difícil entender o mecanismo de raciocínio de uma outra pessoa? Bem, nossa individualidade pode se assemelhar ao labirinto do Minotauro e cada um de nós tem seus becos obscuros e caminhos sem saída, mas acredito que há aspectos básicos a todos nós que nos permitem fazer identificações com acontecimentos e sentimentos alheios. Este ponto é uma importante chave para o respeito. A conhecida (e esquecida?) empatia é um belíssimo exercício de civilidade. Ela não implica que você aprove todas as atitudes do outro, mas que percorra, de forma desapegada, o trajeto feito por aquele raciocínio para saber como funciona a sua lógica.
    Os mais diversos comportamentos e as opiniões que os acompanham não surgem por geração espontânea. São o resultado do meio em que se vive, da criação ou da falta dela, do sistema de crenças, do amadurecimento emocional, das experiências vividas, dos medos acreditados e tantos outros aspectos. Se conseguimos entender esta trajetória podemos compreender o comportamento daí resultante. A equação de causa e consequência se torna bem clara. Se você já consegue trilhar este caminho com facilidade, lembre-se que cada um de nós faz o melhor que pode dentro das suas possibilidades. Ninguém faz uma clara opção pelo que não é bom se conseguisse enxergar claramente como isto lhe prejudica. Fácil é apontar o dedo. Acolher o que é diferente, preservando seu espaço, e sinalizar que alguma coisa pode ser modificada para gerar mais bem-estar já não é tão simples. Isto é respeito e dá trabalho. Por alguma razão, que intimamente já sabemos, optamos primeiramente pelo que dá menos trabalho.
    Outro tropeço desrespeitoso muito comum a todos nós é exigir que os outros percorram um aspecto evolutivo em cinco minutos enquanto que nós levamos cinco anos para chegar naquele patamar. Ocorre que quando olhamos para trás e nos satisfazemos com nossas próprias superações esperamos que todos façam a mesma coisa. Nos esquecemos de como foi todo o processo de mudança e pensamos "se eu consegui, você também pode". Até aí tudo bem. Mas cada um tem seu tempo de aprendizado e rotular outra pessoa como "sem vontade" porque não age da forma como esperamos é um tanto injusto e até cruel.
    Respeito não passa perto e não deve ser confundido com condescendência. Esta, ao contrário do primeiro, não traz crescimento para ninguém. Respeitar envolve auto-conhecimento, esforço, amor verdadeiro e humildade que não se trata de enaltecer o precário, mas de entender que tudo aquilo que lhe faz rechaçar um comportamento alheio pode ser sentido exatamente da mesma forma pelo outro em relação a você. Ter consciência disso é fundamental pois deste ponto nascem (e crescem) duas vias muito distintas: uma de ódio mortal pelo que é diferente e outra do entendimento de que a soma das pluralidades é que torna a vida e o mundo tão especiais e estimulantes.


O Pau de Flor.

    Como já foi percebido até pela criatura mais alienada que por ventura tenha lido o que escrevo, muitas das minhas conclusões nascem da observação e da contemplação da natureza. Suas várias formas de manifestação me são magnéticas e admirá-las e tentar entendê-las traz um contentamento que não encontro em muitas outras atividades (aliás esta semana fui apresentada à flor de maracujá doce e digo com veemência: se você não a conhece, trate de fazê-lo! É uma das coisas mais lindas que já vi. Estupenda e inacreditável!). Pois bem, dirigia eu pela Av. Lucas Nogueira Garcêz um tanto embasbacada pela quantidade de estabelecimentos de saúde que se instalaram por lá. Onde há concentração de hospitais, clínicas e laboratórios há, consequentemente, concentração de pessoas carregando sacolinhas de exames com uma cara muito específica de bunda (uma bunda decadente e mal lavada). Esse cenário em um dia cinzento fez a localidade parecer uma sucursal do inferno. Mas como nem tudo na vida é depressão e medicamento tarja preta, fui salva pelo corredor de trólebus. Nos seus canteiros laterais foram plantados vários pés de Pau de Flor ou Manacá, que em tupi-guarani significa moça bonita. Na Serra do Mar há muitos e acredito que devam fazer parte da vegetação nativa. Talvez por esta razão decidiram plantá-los por aí. O fato é que agora estão todos floridos, pintando vários lugares de branco e tons de rosa, numa generosidade encantadora. No dito canteiro há vários pés, muito deles bem pequenos. Todos estão floridos, mas um chamou especialmente a minha atenção. Ele é muito pequeno, uma esquálida vareta com pouco mais de um metro de altura. Apesar da aparência tão frágil, estava entupido de flores na sua micro copa. É o típico caso do baixinho invocado que a gente tem vontade de olhar de cima e perguntar "o que você acha que está fazendo?". Mas aquela árvore anã estava totalmente alheia à sua aparência peculiar e dedicou-se integralmente a cumprir sua tarefa, sua missão. É época de florada? Então vamos a ela com toda a força. Ponto final. É evidente que o Pau de Flor não é dotado do mesmo aspecto mental que nós. Sorte desta árvore. Se ela pensasse poderia desenvolver algum complexo por ser tão pequena e estar em um lugar tão desfavorável, selvagem, agressivo e poluído. Talvez não florisse por se achar muito nova. Talvez sua mãe a levasse ao médico de Manacás para ter certeza de que sua estatura é normal para idade e saber se florir daquela maneira, ainda tão jovem, não seria o prenúncio de algum problema. Mãe e médico lamentariam a precocidade imperativa de nossa era e achariam que o mundo está perdido. Tudo isso porque a pequena árvore realizou a sua missão. Fez aquilo para que nasceu.
    Pergunto: e nós? Tragédia! Quanto drama, quanto entrave emocional, quanto questionamento que nos impede simplesmente de ser aquilo que somos, de vivenciarmos nossa verdade íntima. Acredito que em nosso âmago está muito claro a que viemos, mas não pode ser tão simples assim. Temos que nos preocupar primeiro com um sem número de dúvidas que vão desde "o que os outros vão pensar" até "mas porque que eu sou assim". Será que é por isso que muitas vezes a vida nos parece um fardo pesado demais, difícil demais? E porque não conseguimos simplesmente viver de acordo com nossa natureza? Por que não deixamos nossas respostas aflorarem? Bem, creio que cada um tenha uma teoria para seu drama pessoal, mas também acredito que temos uma questão a resolver no campo da auto-estima e da importância de nos amarmos com tudo de bom e de mau que trazemos em nossa alma. Uma parte grande de nós é natureza, pois todos juntos compomos algo muito maior. Em algum ponto, nós e os Manacás somos a mesma coisa. Nossa esperança de bem-estar reside em adormecer por alguns instantes esta insana e cultivada atividade mental que nos afasta de nós mesmos para que nosso íntimo (nosso Manacá) possa falar de forma audível e que possamos finalmente florir alegre e despreocupadamente.


"Alegria, alegria minha gente!"

    Imagine uma vida que tenha durado 102 anos! Uma das primeiras coisas que vem à mente é a quantidade de acontecimentos que essa pessoa testemunhou. Várias revoluções políticas, culturais e sociais, vários regimes governamentais, vários avanços tecnológicos e uma infinidade de outros fatos que mudaram o rumo da história do mundo. Mas, por um momento, pense sob o ponto de vista humano, algo pessoal e imagine os acontecimentos cotidianos de uma vida de 102 anos. Todas as pessoas que conheceu, todas as paixões que experimentou e tantas outras que testemunhou, quantas conclusões empolgantes, quantas novidades inebriantes pode ter. Quantas vidas gerou, direta e indiretamente, quanto carinho, afeto e amor teve a capacidade de semear, quanto bem pode propagar. E como tudo tem dois lados e um deles não tem flores, quantas decepções lhe amargaram a boca, quantos desencantos lhe eclipsaram o sol, quantas despedidas reduziram seu coração a pó.
    Somando a parte boa e a parte ruim, ambas certas e irrefutáveis na nossa existência, imagine quanto conhecimento foi possível adquirir ao longo de mais de cem anos. Quanto conhecimento dividido e, assim, multiplicado, quantos conselhos dados, quanta paciência e compreensão diante da inexperiência insurgente.
Tendo acompanhado pouco mais de 1/3 desta longeva existência, fico cabalmente admirada e só tenho uma palavra para descrever este processo: incrível! Quando se pensa em ciclo da vida não há melhor exemplo do que este e eu falo aqui da fileira da geração dos bisnetos, mais para o fundo do teatro. Daqui vejo que esta pequenina pessoa, que teve a audácia de viver por 102 anos fez, entre tantas, uma das coisas que mais admiro: ela foi um ponto de união. Se cada um de nós fosse uma semente ou uma conta ela certamente foi o fio que nos unia num reluzente colar totalmente heterogêneo.
    Imagino cá com meus botões o que testemunharam aqueles que se sentam nas fileiras mais à frente. Viram tudo o que eu vi e muito mais! Agora precisarão lidar com o buraco físico de um espaço que não é mais ocupado. Por sorte ou providência divina isto não ocorre em suas almas onde ela permanecerá derramando seu amor e suas histórias, seu bom humor e sua irreverência. As boas lembranças duram para sempre se assim desejarmos...
    Mais uma vez, como a evolução não pára, o espetáculo chega ao fim num sutil e esperado apagar de luzes. Poder olhar estes 102 anos e perceber suas ramificações faz-me reverenciar a Criação e entender que no dia de hoje presenciamos o verdadeiro milagre da vida.